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Coluna "Por dentro da dança"
Construindo a dança com ética e verdade

Eliana Caminada
caminada@iis.com.br


"Recordar é viver", diz o poeta.

Outro dia, casualmente, deparei-me com a foto da cerimônia de colação de grau da minha primeira turma de história da dança num curso de licenciatura plena. Lá estava eu ao lado das novas colegas e da paraninfa, minha companheira Vera Aragão, posando de patrona.

Como esquecer desse episódio, tão marcante na nova interface que a dança me propunha? Emocionada, revi rosto por rosto daquelas alunas tão queridas, muitas presentes na minha vida até hoje, pensei na Missa rezada na manhã do dia anterior, quando fiquei conhecendo as famílias daquelas jovens, sorri relembrando da festa à noite, do barulho inerente ao jovem e da alegria peculiar à juventude amparada, amada e respeitada. Procurei o discurso que fora impelida a escrever e falar publicamente num palco de teatro, tornei a lê-lo, pensei em como a cena nunca se afastou totalmente de mim, em como continuo a pisar o espaço teatral com a reverência de um templo.

O enfoque principal do texto era a ética. Colocava eu, então, a questão:

"O que justifica um curso de graduação em dança? Até que ponto a opção longa e dispendiosa, ainda que, em geral, profundamente prazerosa, precisa ser valorizada pela direção da instituição que a oferece, pelo corpo docente que tem que indicar não um só, mas diversos caminhos para o estudante, pelo próprio alunado, muitas vezes em dúvida sobre a legitimidade de sua escolha e da validade, em termos práticos, de seu diploma de nível superior e, o mais difícil, pelos pais, tão justamente preocupados com a possível insegurança de uma carreira ligada à área artística?"

"Certamente", ponderava, "o país não tem respondido positivamente a esses questionamentos o que, a meu ver, aumenta o valor da resposta que vem dos próprios estudantes".

Começava lembrando àquelas jovens e queridas meninas quanta cumplicidade e afetividade haviam envolvido nossa relação, tão informal, e o quanto isso fora determinante para o desenvolvimento do meu trabalho que reconheço, foi, e continua sendo, muito dependente da colaboração delas. Sou filha de um professor que sempre acreditou que o distanciamento entre gerações não estimula respeito e muito menos confiança e que não tinha o menor pudor em se revelar sentimental e emotivo. Nunca encontrei motivo para arrependimento diante dessa postura.

Emoção é presença freqüente nas minhas aulas; incontáveis são as vezes em que choramos juntos, eu e as turmas, assistindo a um ballet pelo vídeo ou falando sobre um artista. Na ocasião declarei-me sinceramente emocionada, e um tanto perplexa, admitia, diante da opção profissional e, portanto, existencial, pela dança num país como o nosso, onde o povo desconhece o nome de qualquer autoridade oficial da área cultural sem que isso provoque ao menos uma reflexão em qualquer nível.

Sempre digo que chorar de emoção é uma bênção. Triste é chorar de dor.

E prossegui mencionando a integridade de como elas estavam trilhando esse caminho.
Explicava:

"Porque, sem dúvida, ele pode ser mais curto, mais fácil, menos verdadeiro e menos honesto. Mas vocês não recuaram diante da grande questão da vida, qual seja, a de exercer de forma ética e moral a liberdade de escolha que Deus, a vida e os pais lhes proporcionaram. Livres, vocês assumem a decisão de que vida desejam construir, a responsabilidade pelas decisões tomadas, a edificação de uma existência autêntica e verdadeira."

Hoje o primeiro parágrafo teria que ser revisto. A presença de Gilberto Gil à frente de um ministério, talvez já tenha conferido ao cargo a visibilidade que o justifica e o torna legítimo. Longe das autoridades de gabinete, o ministro Gil é senhor de uma obra de inquestionável importância para a cultura popular brasileira. Sua figura, percebida e assimilada por brasileiros de todas as classes sociais, creio eu, é capaz de transformar um tenso plenário internacional numa grande confraternização universal. Milagres da Arte!

Quanto ao segundo parágrafo, mais do que nunca respeito os que constroem sua vida sobre valores éticos e morais. A liberdade é um bem e um direito, não resta a dúvida, mas tem um preço que começa pelo reconhecimento e respeito pelo direito do próximo.

Continuava ponderando: "Nossa verdade está comprometida com a arte; apesar de muitos profetas apocalípticos anunciarem centenas de vezes sua morte sabemos que ela não é mortal; ao contrário - se existe eternidade na vida é na arte que ela se manifesta, se Deus está em nós é através da arte que expressamos sua essência".

De fato, estou convicta de que é, sobretudo, através da arte que o Divino se manifesta em nós. Mais do que a ciência, mais do que o esporte, a Arte tem sido, não apenas o farol da humanidade, mas o que lhe permitiu ter história. A trajetória do homem sempre foi e sempre será contada e preservada por intermédio das obras de artistas plásticos, músicos, dançarinos, literatos, que nas suas criações reproduzem, ao longo de tantos mil anos, as diversas etapas que vivemos nessa terra azul.

Sublinhava:

"Estamos conscientes de que o domínio dos meios de expressão é fruto de uma longa conquista. Dentre eles escolhemos, talvez, o mais dicotômico: a dança. A dança não prescinde nem do tempo nem do espaço, nem da razão e da técnica nem da emoção, nem da força atlética e humana nem da aparência de fragilidade dos nossos corpos, nem da transitoriedade do momento em que o movimento se realiza nem da eternidade de como ele se fixa na alma de quem assiste. Somos artistas da dança; temos um pé na superação da força da gravidade, tentamos voar, mas ninguém, como nós, ama com mais força o chão, no qual evolui, dança, senta, bate-papo, estuda e até descansa".

Clarificando a questão: A música necessita de tempo para que se concretize, embora possa prescindir de espaço. Por outro lado, qualquer pintura, uma vez concluída, ocupará fatalmente seu espaço, ainda que não precisemos destinar nenhum segundo a sua contemplação.

Lembrava citando um fragmento do livro "Dentro da Dança" do grande bailarino moderno Murray Louis, que expressou como poucos o que é o mundo de um profissional da dança visto por dentro dele:

"Dentro da dança vocês optaram pelo aspecto mais generoso, mais anônimo e menos glamuroso: a de orientador. O "eu-professor" é completamente desinteressado; dá de si até o que não lhe pertence e quando o espetáculo vai para cena, embora o bailarino tenha dependido desse artista até uma hora antes, ele é a única parte da engrenagem que envolve performers(1) , coreógrafo, ensaiador, remontador(2), maestro, artistas plásticos, etc."

Afirma Louis, com razão, que o professor é um artista tão dedicado e sensível como os demais. Constrói sua obra - o próprio bailarino - sem saber o resultado final, o que, como em toda obra de arte, é exatamente o que a justifica. Sem tom de lamento constata que o professor de ballet, raramente reverenciado, é alguém para quem as luzes do palco e o aplauso do público não são destinados e que, em geral, fica esquecido pelos próprios bailarinos. Sem falar da crítica, voltada demais para suas próprias elucubrações para se preocupar com os bastidores de uma companhia de dança.

Senhores leitores! Um parêntese nessas recordações: Quando falo em críticos e seus veículos de comunicação, não estou me referindo a repórteres deslocados para cobrir a área artística, quase sempre sem qualquer conhecimento dela, comprometidos apenas com a notícia que fofocas de bastidor podem render. O meio de dança não é grande "produtor" de escândalos, logo, ele é bem pouco contemplado.

Retornando àquele momento que fixei para sempre, adverti às novas profissionais sobre o compromisso que assumíamos de tentar suprir a omissão do Estado na cultura, principalmente no que se refere às artes cênicas, numa época dominada pelo materialismo e pela mecanização, na qual a necessidade de poesia e criações artísticas de qualidade são mais fundamentais do que sempre. Recordava-lhes:

"Nossa intelectualidade desconhece totalmente a dança em qualquer de suas formas de expressão; nossa inibição diante do poder da palavra e da retórica nos fragiliza ainda mais. Só a cultura geral e a instrução poderão conferir representatividade e legitimidade a nossa categoria".

Conclamava:

"Respeitem todas as tendências de dança, elas não se excluem, elas se completam. Da nossa história, tão bela e tão rica, retornem sempre ao saber e à importância das inigualáveis figuras históricas de Noverre(3); Coralli e Perrot(4); Petipa(5); Fokine(6); Duncan(7); Nijinski(8); Vaganova(9); Laban(10); Grahan(11); Balanchine(12); Bejart(13); MacMillan(14); Roland Petit(15), entre tantos outros que ficaram porque já foram julgados pela história."

Dizia eu, reafirmando o que defendo hoje:

"Lembrem-se: a arte tem um compromisso com a sensibilidade e com a beleza; a verdade matemática é o axioma da ciência, não da arte. Procurem com todas as forças impedir que a dança se transforme em uma mera exibição vazia de marcas atléticas ou numa "pseudo-arte" que nada mais é do que palavras bonitas amparadas pelos meios de comunicação, mas desprovidas do essencial: a vivência corporal da dança".
Por fim, exortava-as a guardar nos corações a capacidade de admirar os artistas e companheiros que transcendem nossos limites. Parafraseando a velha fábula da raposa e as uvas observava: "Se as uvas da parreira não estão ao nosso alcance admitamos, com alegria e êxtase, que elas são saborosas, cheirosas e que Deus nos deu sentidos para percebê-las, olhá-las e nos maravilhar com sua beleza".

Encerrava dizendo que gostaria de vê-las transformadas em autênticas "sathiagrahis" (16) da dança.

Meu discurso terminava aqui. Hoje não poderia dá-lo por encerrado. A ênfase na valorização da práxis como base da construção do conhecimento teórico também na ética e no apego à verdade me pareceu pertinente ao momento atual, mas a falta de menção a rapazes, num texto meu, que sou casada há 37 anos com o pai de meu filho, um bailarino clássico, é bem reveladora de que ainda temos muito o que caminhar sob o ponto de vista ético e de apego à verdade.

Creio que cabe aqui uma convocação: usemos nossa paixão pela arte, nossa crença em sua capacidade de servir como instrumento de salvação, exercício de sensibilidade, inclusão e superação de preconceitos para divulgá-la junto a esse povo criativo, rítmico, dançante, caloroso, valoroso e belo: o povo brasileiro. Reivindiquemos espaços!
Sejamos cidadãos do Brasil!


Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".


 

Ver outros artigos da coluna

 

1. Executantes, palavra muito usada no meio teatral.

2. O remontador é responsável pela preservação das criações que compõem o acervo de uma companhia de dança ou de um bailarino. De certa forma cabe a ele a eternidade das obras que fazem a própria história da dança.

3. Jean-Georges Noverre, criador do movimento denominado "Ballet d'Action", figura de transcendental importância que conferiu autonomia à dança cênica ao chamar a atenção, pela primeira vez, sobre a necessidade de uma ação conjunta de todos os elementos que entram num espetáculo de dança.

4. Jean Coralli e Jules Perrot, expressões máximas do estado de espírito romântico; coreógrafos da maior criação do romantismo na dança, o ballet "Giselle".

5. Marius Petipa conferiu ao ballet acadêmico sua forma cênica definitiva merecendo de Stravinski a afirmação de que, "na sua verdadeira essência, na austeridade de suas formas, constitui-se no triunfo da ordem sobre o arbítrio". Foi o criador dos paradigmáticos "A Bela Adormecida" e "O Lago dos Cisnes" , ambos com música de Piotr Ilich Tchaikovsky, entre inúmeros outros ballets eternos.

6. Mikahil Fokine, criador do mais célebre solo da história da dança: "A Morte do Cisne", publicou, em 1914, os cinco princípios que revolucionaram, definitivamente, o ballet como dança cênica.

7. Isadora Duncan, personalidade ímpar na história da dança, foi a preconizadora da dança livre e exerceu enorme influência sobre os criadores dos primeiros grandes nomes do século XX.

8. Vaslav Nijinski, gênio que sustentou a idéia de que cada movimento tem que ter sua razão de ser ligada à idéia criadora, não hesitando, para isso, em mexer nas posições acadêmicas de pés, ainda que não abrisse mão de que uma técnica definida amparasse tal ousadia, que, de forma pioneira, serviu-se da imobilidade, dos momentos de silêncio, dos gestos angulosos, da concepção de que a dança pode explicar o drama.

9. Agripina Vaganova, professora russa, cujo método de ensino associado a alma dos povos do leste europeu produziu os bailarinos russos, os maiores intérpretes do século.

10. Rudolf Laban, grande teórico do movimento, criador do sistema de notação gráfica Labanotation.

11. Martha Graham, figura ímpar da dança moderna, deixou uma obra e uma técnica perenes e universais.

12. George Balanchine, o russo que traduzindo em dança o povo norte-americano se tornou a maior referência do ballet do Ocidente.

13. Maurice Béjart um dos mais fecundos e populares criadores do século XX, que afirma, categoricamente, que não se constrói o futuro sem os alicerces do passado

14. Kenneth MacMillan, o grande dramaturgo do movimento, consolidou e deu projeção internacional ao Royal Ballet de Londres.

15. Roland Petit, a maior expressão da criação francesa de bases acadêmicas da França do século XX., cuja criação, misto de tragédia com champanhe, representa a síntese perfeita do povo francês.

16. Sathiagraha= apego à verdade, palavra cunhada por Mahatma Gandhi para definir sua filosofia de vida. Sathiagrahi é quem vive de acordo com esse princípio.

PS: Os nomes históricos sobre os quais não existem notas de rodapé já figuraram nos artigos precedentes.

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