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A Amizade ou Cícero e Riobaldo estão de acordo |
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Eduardo Gama |
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“Amigo para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual para o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e todos os sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é. Amigo meu era Diadorim.”1 Esta é talvez, a definição da mais bela história de amizade da literatura. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa nos conta a relação entre Riobaldo e Diadorim. Quem narra a história é Riobaldo, já velho, mas que mantém viva na lembrança a grande amizade com o amigo jagunço. Quem já lei o romance sabe que Diadorim era na verdade uma mulher. Porém, Riobaldo não sabia e pensava: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.”2 Antes de destrinchar o sentido desta amizade, vale a pena contar como ela se deu. Riobaldo tinha cerca de catorze anos. Como havia se curado de uma doença, a mãe fez uma promessa. O menino teria de pedir esmolas no porto para pagar uma missa. Certo dia, enquanto cumpria a promessa, apareceu um menino e os dois começaram a conversar sobre assuntos triviais: de onde vem, para onde vai. Com o passar do tempo, Riobaldo começou a se afeiçoar àquele menino e desejou que este não fosse mais embora. O menino foi fazer um passeio de canoa e o chamou. Uma observação que Riobaldo fez, já velho e que é muito importante: “Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim.”3 Neste passeio pelo Rio São Francisco, eles pararam em um determinado ponto, desceram e ficaram “espreitando distâncias do rio e o parado das coisas.”4 Após o passeio, eles se despediram e, embora não soubesse o nome do amigo, sabia que ficaria para sempre em sua lembrança: “Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.” No excelente romance de Guimarães Rosa, o futuro uniu estes dois amigos, que andaram pelos sertões, fazendo companhia um ao outro. Este fato nos leva a pensar na citação inicial deste ensaio, em que Riobaldo define o laço que os unia como um prazer de estar junto e todos os sacrifícios. Talvez seja por isso que a amizade esteja em baixa atualmente, porque se é um prazer, também é exigente, requer esforço, dedicação. Mas não é um fardo, porque nos dá riquezas que não sonhávamos que existissem sobre a terra. Um amigo, na plena acepção do termo, é a pessoa que nos mostra a grandeza que cada ser humano guarda e como este guardar é relativo, pois o tesouro que ele tinha sob seu poder foi feito para dar a outra pessoa, ao seu amigo. É deste modo que podemos entender também a grande amizade que ligou o filósofo, poeta e grande orador Cícero (106 a.C/43 a.C) a Ático. Foi por causa do amigo que Cícero escreveu o belo diálogo Da Amizade, que “oferece um interesse único: é a obra de um amigo escrevendo ao seu mais querido amigo, após uma vida de íntima amizade”5, diz o tradutor da obra, Tassilo Orpheu Spalding. Afirma também que esta obra está baseada nas seguintes reflexões: a amizade não é procurada para satisfazer o egoísmo, mas devido a um desejo da alma, e que não há amizade sem virtude. Se nos lembrarmos do que disse Riobaldo, vemos que é o mesmo que Cícero: prazer de estar junto e não prazer por sentir prazer e todos os sacrifícios, ou seja, ter e adquirir virtudes. Discorrendo sobre a primeira reflexão, de que não é por egoísmo, Cícero diz que o egoísta se atormenta excessivamente com os seus próprios males, o que não é próprio do amigo. Talvez esteja aí também um dos motivos pelos quais se tem uma certa desconfiança atualmente em relação à amizade. Muitas vezes, as pessoas procuram não confidentes, mas depósitos de lamúrias, no qual um eu fica girando em seu próprio eixo sem ouvir e dar espaço ao outro: não é a busca de um amigo, mas a de um terceiro ouvido. É certo que o amigo tem essa função, a de escutar o outro, mas fala ao outro, não para si mesmo, embora quando falamos a um amigo verdadeiro é como se falássemos para nós mesmos, mas não porque não lhe damos ouvido, mas porque nos compreende, ou como diz Cícero: “Existe um homem para quem viver seja realmente viver, como diz Ênio, se não conhece a felicidade de amar e ser amado? Que há de mais doce do que ter alguém com quem ouses falar como falarias a ti mesmo? Para que serviriam tão grandes frutos na felicidade se não tivesse com quem partilhar o gozo que eles nos dão?”6 Sobre a segunda reflexão, Cícero e Riobaldo também estão de acordo no que diz respeito às exigências de uma amizade. Após dizer que “tira o sol do mundo quem tira a amizade da vida”, Cícero afirma que não há razão para desistir da amizade devido aos dissabores que pode vir a nos causar, já que do mesmo modo é insensato renunciar à virtude pelo fato de exigir esforço. Além disso, suportar e auxiliar o amigo nos momentos em que ser amigo de fato é mais custoso, é uma grande oportunidade para alcançarmos novas virtudes e mais, demonstrar ao amigo que a amizade não é devida a um impulso gregário ou egoísta, mas devido a um amor desinteressado. É também o que diz Riobaldo quando fala da sua amizade por Diadorim: “Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor.”7 Portanto, embora exista uma troca muito benéfica na amizade, ela não se resume a isto porque é doação. E o que se dá? O que há de mais profundo no ser humano: a sua interioridade, a sua intimidade. Cícero diz que não é “tanto a utilidade partilhada pelo amigo, como o próprio amor do amigo que deleita: o que vem dum amigo sempre nos agrada, quando seu zelo por nós o inspirou”. E concluiu esta reflexão afirmando que não é a amizade que segue a utilidade, mas a utilidade segue a amizade”, ou seja, não buscamos no amigo o que nos convêm, mas a própria amizade traz consigo o que nos convêm. A amizade, enfim, é um tipo de amor em que a alma é o que conta, como disse Riobaldo: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem”8. Do mesmo modo, e mostrando que as diferentes épocas viram a amizade como um bem sem preço que possa medir o seu valor, Cícero vê na busca da amigo o transbordar do amor que cada um sente por si – não como egoísmo, mas como instinto fundamental de sobrevivência e acolhimento verdadeiro da própria riqueza como pessoa: “Se alguém ama a si mesmo, não é porque exija de si mesmo o preço desse afeto, mas porque cada um é caro a si próprio. A não ser que se transfira isto para a amizade, jamais será encontro verdadeiro: pois o verdadeiro amigo é como um outro nós mesmos. Se isto se evidencia nos animais, nas aves, nos peixes. Que primeiro amam a si mesmos (pois este instinto nasce com todo ser vivo), em seguida procuram e perseguem o do seu gênero para a eles se unirem, e fazem isto com tal ternura que lembra a dos homens, mais ainda no homem, onde ocorre por sua própria natureza, o qual ama a si mesmo e procura, a seguir, um coração com o qual o seu se possa unir tão estreitamente que os dois não façam senão um!”9 O escritor C.S.Lewis afirmou no livro The Four Loves que a baixa estima que a amizade tem atualmente é devido ao fato de que poucos a experimentam.10 O que é uma pena, visto que se o mundo ainda guarda muitos preceitos cristãos, o traço característico destes, de acordo com as palavras de Cristo, é o amor que cada um tem pelo outro, “nisso conhecerão que sois meus discípulos, se voa amardes uns aos outros.” 1Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, in Ficção completa, Rio de Janeiro, 1995, Nova Aguilar, p. 119.
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Eduardo Gama, professor de redação e literatura em Jundiaí e Campinas. Mestres em Literatura pela USP, tradutor, jornalista e publicitário. É autor do livro de poemas "Sonata para verso e voz" e editor dos sites www.doutrinacatolica.com.br e www.revisaoetraducao.com.br e-mail: redator@portaldafamilia.org Publicado no Portal da Família em 06/05/2008 |
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