Portal da Família
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Relativismo absoluto |
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André Gonçalves Fernandes |
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Na época do auge das ideologias, cada um lia a cartilha e seguia seu credo específico. Eram uns aqui e outros lá. O tabuleiro político era bem delimitado e não comportava indecisos ou posturas conciliatórias. Se houvesse dissidente, o sujeito não teria mais espaço para promover suas ideias, o que equivaleria a uma espécie de morte civil. E a patrulha do pensamento era de uma sagacidade investigativa, muito semelhante à forma com que Sherlock Holmes costuma deixar o inspetor Lestrade e toda Scotland Yard para trás nos contos de literatura criminal... Hoje, vivemos outros ares. O moralismo ideológico foi substituído por outro, cujas palavras-chave são, principalmente, justiça, paz e ecologia. São expressões que ligamos a valores morais essenciais que realmente precisamos. Por isso, costumamos prezá-los e fazer com que sejam vividos no meio da sociedade. As reações emocionais dos anônimos diante de um autor confesso de crime hediondo não só clamam por justiça como, em alguns casos, se não existisse a tutela da lei, o sujeito seria acusado, julgado, condenado e executado pelo próprio público. Todos desejamos a paz e lembramos-nos dela quando a temperatura local ou mundial começa a aumentar preocupantemente. E o homem já deu demonstrações suficientes de usufruto desordenado dos recursos naturais, a ponto de não só esgotá-los, mas de, indiretamente, destruir muitos ecossistemas que o cercavam durante séculos. Contudo, esse novo moralismo ainda permanece um tanto genérico e, em regra, desliza quase inevitavelmente para a esfera político-partidária. Ele torna-se, assim, um ditame dirigido aos outros e não um dever pessoal de nossa vida cotidiana. O que é fazer a coisa certa? Quem define a paz? Quais os verdadeiros propósitos da causa ambientalista? Estas questões e outras vagam por aí em busca de respostas. Vejamos o caso do pacifismo. Durante os anos noventa, pudemos assistir nas praças e ruas do mundo como este, rapidamente e com muita roupa, degenerou num anarquismo político-social, em guerras fratricidas e na escalada do terrorismo. E, de uns anos para cá, os atos de pacifismo focaram outras pautas, tiraram a roupa e tornaram-se literalmente mais epidérmicos: manifestações “de peito” do feminismo do Femen contra isso ou aquilo; modelos, totalmente em “pele”, em defesa dos animais que cedem sua pele para que a indústria da moda continue as deixando cada vez mais na “pele”; ciclistas, bem à vontade, dando umas pedaladas em protesto à falta de mobilidade urbana e a marcha da vadias dando sinais vigorosos de que vadiagem não é atributo exclusivo do macho de nossa espécie... O moralismo político dos anos sessenta e setenta, cujas raízes ainda estão cheias de seiva e que alimentam sua versão atual, foi um moralismo que conseguiu, com rara eficácia, fascinar jovens cheios de ideais. Mas era um moralismo de rua sem saída, porque era privado de uma racionalidade serena, pondo a utopia política acima da dignidade humana, a ponto de, em alguns casos, em prol de grandes objetivos, desprezar o homem por completo. E, também, um moralismo de mão única: não cria uma via de regeneração e, às vezes, até mesmo a bloqueia. E mesmo a religião não está imune a esse fenômeno, quando reduz o núcleo da mensagem evangélica à mera identificação com as palavras de ordem do moralismo político tal como vivemos hoje, proclamando-as como a síntese de seu credo. Palavras que, em última análise, como no caso do pacifismo, prestam-se a qualquer tipo de discurso. Do mais recatado ao mais assanhado. À semelhança daquelas palavras, o moralismo político atual aceita diversos discursos, menos um: um discurso que defenda princípios e valores imutáveis, uma atitude etiquetada de fundamentalista. Porque o relativismo que está por trás, paradoxalmente, pretende-se como absoluto e, ao assim atuar, impõe-se com uma ditadura do pensamento. Não reconhece coisa alguma como definitiva e propõe, como medida última, o próprio eu e seus caprichos: desde que seja com “justiça”, “paz” e “ecologia”. Com respeito à divergência, é o que penso. |
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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras. E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br Publicado no Portal da Família em 06/07/2013 |
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