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O banho do bebê

Sueli Caramello Uliano


Para explicar o jeito dela, só usando a sua própria expressão: tô enraivada!!! E de lá e de cá, andando pela cozinha, foi contando:

Cheguei lá em casa, ontem, e vem o rapaz que mora na outra casa e é até meio parente nosso, e diz pra menina que está do lado dele: "Fala aqui com ela" - que era eu - "que ela vai te dar um remédio..." E eu nem entendi direito, depois entendi que era remédio de fazer aborto. E ele achou que eu ia dar a ela um remédio desses! E eu fiquei... fiquei... fiquei... arronada! "Rapaz, então tu acha que eu vou me envolver num assassinato?" E aí ele ficou maluco porque eu disse isso... "Assassinato? Que assassinato, nada!" Ficou transtornado. "Pois é assassinato, sim!" eu respondi. "Vai querer me envolver em matar uma criança???" "Que criança, nada! É uma bolinha de sangue, é isso que é: uma bolinha de sangue." "Pois, se é bolinha de sangue..., deixa onde tá! Pra que tirar uma bolinha de sangue?" Aí ele perdeu a cor, e eu entendi, muito lerda, que ele era o pai! E começou a dizer que não sabia se ele era mesmo o pai. Como é que ele podia saber se ele era o pai. E que ele queria filho, mas não assim, clandestino, nem com ela. Pois, pensasse antes! E ela, então, dava dó de ver a humilhação... Nem dormi direito esta noite, meu marido me disse: "tu arrumou uma encrenca." Mas eu não me arrependo. Não sei como alguém tem coragem...

No dia seguinte, chegou sorrindo:

Ufa! O rapaz tava me esperando. Foi isso mesmo, ele tava muito nervoso, tinha acabado de saber. Ela tava lá porque tinha ido contar a ele. Disse que vai amparar o filho, mas só depois de saber se é mesmo dele, depois de exame de sangue, DNA. Vai ajudar na gravidez, mas só registra com exame confirmando. Que alívio! Ao menos o pobrezinho não vai ser matado, assim... Não sei como alguém tem coragem....

É curioso perceber o quanto sabedoria não depende de bancos escolares, embora estes até possam munir as pessoas de vocabulário e estruturas lingüísticas sofisticadas, instrumentos de forte pressão contra os pouco instruídos, bem como ferramentas insidiosas e eloqüentes na manipulação da opinião pública.

A novidade no Brasil, na defesa da prática livre do aborto, é esgrimir estatísticas que detectam que "é sobretudo o grau de instrução que define a opinião da população brasileira quanto ao aborto". E arrastados pelos números dos percentuais, os que são contra o aborto ganham a oportunidade de alistar-se entre os mais ignorantes. Mas não ganham espaço na grande mídia para expor as suas reflexões em torno do palavreado inconsistente e premissas defeituosas, veiculados pelos que se pretendem porta-vozes dos instruídos deste país. E, uma vez instruídos, favoráveis ao aborto.

Sei também que seria mais fácil para mim deixar esse assunto para lá, mas, como diz a minha sábia empregada de 23 anos, criada no sertão da Bahia: se eu não vejo, paciência, mas se vejo e calo, tô apoiando. É a sua versão corajosamente espontânea para o "Quem cala, consente." dos instruídos.

E tenho visto, espalhados pela cidade, cartazes e painéis eletrônicos, além da publicação em jornais de matérias que defendem a descriminalização do aborto. (Por sinal, digito e o Word grifa, sem saber o que fazer com a estranha palavra que visa a modificar um ato: palavra mágica, essa!).

Também publicou-se por aí, na grande imprensa, o seguinte :

"No dia 28 de setembro foi celebrado o Dia Internacional pela Descriminalização do Aborto. Na Câmara dos Deputados há projetos legislativos visando a supressão dos dispositivos penais que criminalizam o aborto, ou mesmo a ampliação das possibilidades legais de interrupção da gravidez indesejada. Mas há também propostas que objetivam assegurar a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, de forma a afastar, inclusive, as hipóteses de aborto legal (em caso de estupro ou risco de vida da gestante). Setores da Igreja Católica têm empenhado articulados esforços em prol da aprovação desta última proposta. Esse posicionamento da igreja suscita três reflexões: a relação entre religião e Estado; o alcance dos direitos sexuais e reprodutivos; e a abrangência do campo da liberdade e da autodeterminação individual. O Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos. Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao imporem uma moral única, inviabilizam qualquer projeto de sociedade pluralista, justa e democrática. A ordem jurídica em um Estado democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral católica ou da moral de qualquer religião." ( Folha de São Paulo, 06/10/03, Tendências/Debates)
E na seqüência apresentam-se os dados estatísticos a que já nos referimos acima.

Bem, dizer que "O Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos" é pretender estabelecer um dogma incontestável e, no entanto, bastante contestável. Os Estados laicos já foram e são exemplo de todo tipo de violação dos direitos humanos. Assim foi nos países da Cortina de Ferro, sem qualquer laivo de influência religiosa. Também não se pode dizer que o III Reich, totalmente autônomo em face da religião, tenha sido exemplo de garantia de direitos humanos. Como vemos, Estado laical não é garantia de nada. Antes fosse!

Pretender que a moral não seja única é legitimar a discriminação. O subjetivismo moral viabiliza a ética de ocasião a propósito de preconceitos culturais, de interesses do Estado laical, pressões internacionais ou egoísmo individual mesmo. E para diluir as responsabilidades utiliza-se o chá digestivo dos eufemismos vocabulares do tipo: descriminalização do aborto, interrupção ou redução da gravidez, e etc. etc. etc. Que poder têm as palavras! É por isso importantíssimo ir aos fatos: todo esse blá, blá, blá no sentido de opor ortodoxia religiosa a liberdade pretende desviar a questão do seu ponto fulcral: aborto é homicídio. Qualquer homem em sã consciência, seja cristão, judeu, hindu, muçulmano, ou que não professe qualquer religião, deveria reconhecer isso. Quem é a favor do aborto também costuma apoiar a eutanásia, discriminando a vida por idade, desprezando-a nas fases embrionária e senil.

Evidentemente não se pode abrir mão da "garantia essencial para o exercício dos direitos humanos". Só que o primeiro direito que deve ser garantido é o direito à vida. Será que é possível concordar com o rapaz que disse que o embrião é apenas uma bolinha de sangue? Pois saibam que ele tem um baixo grau de instrução. Dá para concordar com ele? Saibam também que já existem grupos na Europa estabelecendo "os direitos do embrião". E são grupos de médicos de altíssimo gabarito.

O segundo item proposto para reflexão é "o alcance dos direitos sexuais e reprodutivos". De fato, na Conferência sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo, proclamaram-se os "direitos reprodutivos" da mulher. Ninguém esclarece muito bem o que vem a ser isso. Na verdade, utiliza-se a expressão como se significasse o direito à não-reprodução: toda a mobilização se faz em função de que a mulher tenha menos filhos, instruindo-a a respeito dos métodos de controle da natalidade e instituindo um verdadeiro patrulhamento ideológico para desmoralizar as que pretendem agir de outra forma. Em nenhum momento se ouve falar de auxílio médico àquela que quer exercer o seu direito reprodutivo. É inaceitável a redução desse conceito. Deveria ser evidente que as mulheres têm todo o direito de serem amparadas para terem os seus filhos e criá-los com dignidade, não para abortá-los. Se tantas mulheres saem feridas ou perdem a vida praticando aborto clandestino, é de se notar que as crianças morrem sempre, seja na clandestinidade, seja no chamado aborto seguro. Seguro para quem?

E aqui já entramos no último item a ser considerado: "a abrangência do campo da liberdade e da autodeterminação individual". De fato, não se pode perder de vista que o homem é sempre um "ser que decide" e age em vista das suas decisões. O que não quer dizer que não possa tomar decisões equivocadas e, no exercício da sua liberdade, invadir a liberdade alheia, ou o direito alheio, o que no caso do aborto significa a mãe invadindo e interrompendo a existência do filho. Permitir isso não é próprio de um legítimo Estado democrático de direito.

É também muito curioso notar que nessas discussões em torno do aborto, ninguém fala nas responsabilidades do pai da criança. Os homens continuam numa situação bastante confortável, pois enquanto as mulheres acham que estão usando os seus direitos sexuais, estão na verdade sendo usadas pelos homens.

Foi bom saber, afinal, que na Câmara dos Deputados há propostas que objetivam assegurar a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção. Que outra coisa se pode pretender de um Estado justo, senão que atue em defesa dos inocentes e desprotegidos?

Sensibilidade é coisa misteriosa. Antes do xampu "Chega de Choro", o banho do bebê exigia um cuidado muito especial. Porque o berreiro que se desencadeava quando o xampu entrava nos olhinhos sensíveis era um desespero só... Rostinho afogueado, mãozinhas para o alto, gritos e gritos e gritos... A mãe, analfabeta ou instruída, apressava-se no enxágüe, palavras doces, toalha macia... Mas só aos poucos, entre soluços sentidos, a tranqüilidade ia voltando. De certa forma, aquele sabão estragava a brincadeira. Tanto que o trauma revelava-se logo na aquisição das primeiras palavras: Cabeça, não!

Tempos bons estes, de alta tecnologia, em que as mães, analfabetas ou instruídas, têm tantos recursos para suavizar a vida do seu bebê. Tantos recursos e tão à mão... tomara que sempre para suavizar a vida! Porque grau de instrução e palavreado estão longe de atestar legítima sensibilidade e um mínimo de racionalidade. Vai ver entrou sabão nos olhos e resultou nesse "cabeça, não!" expresso por rico, criativo e vazio vocabulário.

Nota Conclusiva:
Sexta-feira, dia 14 de novembro de 2003, entrou, inesperadamente, na Pauta da Comissão Parlamentar de Seguridade Social e Família, da Câmara dos Deputados Federais, para serem votados já no dia 19, dois Projetos de Lei que propõem a supressão do art. 124 do Código Penal, o que tornaria legal o aborto em todo o país, por qualquer motivo, até o nono mês da gestação. Trata-se do PL 1.135/91 - que tem apensados todos os outros Projetos de Aprovação do Aborto restrito a alguma circunstância, em tramitação no Parlamento - e o PL 21/2003, que não tem nenhum apensado, mas que propõe igualmente a supressão do art. 124 do Código Penal. Apesar da forma indireta que foi utilizada e da exigüidade de tempo, a reação popular, através de e-mails, fax e telefonemas foi muito expressiva, de modo que a Dep. Jandira Feghali, do PC do B, que dera Parecer favorável à aprovação do PL 1.135/91, optou por retirá-lo da Pauta, sugerindo a criação de uma Comissão de estudos. É possível acessar a Pauta com a identificação completa dos projetos no endereço
http://www.camara.gov.br/internet/ordemdodia/integras/180750.htm

 


Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela Universidade de São Paulo, Presidente do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para assuntos de adolescência e educação.

É autora do livro Por um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais.

e-mail: scaramellu@terra.com.br

 


 

 

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