Portal da Família
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Duas
datas Paulo Geraldo |
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Novembro é, mais do que todos os outros, um mês apropriado para entrar num cemitério. E eu fui. Um dia surpreendentemente de sol, talvez já
do "Verão de S. Martinho", que não costuma ser
extraordinariamente rigoroso em pontualidade. E vi-os. Alguns de bigode, outros com óculos.
Algumas com aqueles lenços de aldeia nas cabeças; outras
com penteados de cabeleireiro, agora tão inúteis como os
lenços. Uns com os nomes da moda - dados já depois de terem
chegado as telenovelas brasileiras -, outros com nomes que já foram
da moda: Ermelinda, Eurico, Armindo... (Eu não digo? O computador
está a assinalar erros nestas palavras...). Tão diferentes uns dos outros nas idades,
nas fotografias, nas datas - sempre duas, sempre só duas - que
descansam junto dos nomes. Tão diferentes na aparência exterior
dos jazigos, nas flores - quase todas já secas... - que os adornam,
nas visitas que recebem. Mas tão igualados na morte, tão
igualmente despidos de tempo e de coisas. Todos eles resumidos, de forma
semelhante, em duas datas - sempre duas, sempre só duas. Tiveram um nome de aqui, protegeram os corpos
dentro de roupas como as nossas, pisaram as pedras destas ruas, albergaram
carinhos nos corações. Tiveram problemas e alegrias, cantaram,
deram prendas. Fizeram o bem e o mal. Nem todos. Porque li "inocente" em
algumas placas. Alguns andaram por aqui tão breves instantes...
Não houve ocasiões para se sujarem, não houve tempo
para deixarem crescer dentro deles a semente de mal que traziam consigo. Como aqueles três irmãos, todos
pequenos, que morreram no mesmo dia juntamente com a mãe. Imagino
que tenha sido um acidente, talvez na estrada. Piedoso acontecimento -
digo eu, tentando ver nele um lado bom -, pois permitiu que nunca aquela
mãe passasse pelo tormento de ver um filho morto; pois permitiu
àquelas crianças não saberem nunca que coisa é
viver sem mãe. Ou como aquela menina que viveu... um dia. Beijaram-na,
vestiram-lhe umas roupinhas, batizaram-na, fizeram-lhe uma fotografia.
Flor de um dia... Flor eterna porque inocente. Pensei que somente a inocência - a primeira
ou a conquistada - se reveste realmente de imortalidade. Que outra coisa
poderia ser eterna? Porque é ela a beleza interior e, quanto à
beleza exterior - aos penteados, aos lenços, aos bigodes... - estamos
conversados: pó... E fiquei a pensar nos outros, naqueles que viveram
muitos dias. Em particular, naquele que juntou, entre a primeira e a última
datas - sempre duas, sempre só duas -, o mesmo número de
anos que tenho agora... Pensei, enfim, nos que viveram o tempo suficiente
para saberem o que são o bem e o mal, para se tornarem responsáveis
pelo seu comportamento. Naqueles que inevitavelmente se cobriram de culpas. Pensei neles porque a culpa é o oposto
da inocência, porque a culpa destrói a inocência. E,
depois disso acontecer, será necessário recuperá-la,
se aspirarmos - e aspiramos - a viver sempre. Temos algum tempo para isso. Até chegar...
a segunda data. Paulo Geraldo é professor de Língua Portuguesa em Portugal. |
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