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Coluna "Por dentro da dança"
Bailarina atípica

Eliana Caminada
caminada@iis.com.br


Reconheço: sou uma bailarina atípica. Por quê? Porque, ao contrário de quem ama a dança - e eu a adoro -, sou muito mais ligada à palavra do que à música. Por isso mesmo, de forma que admito impertinente, sou capaz de ouvir setenta e três canções de Chico Buarque atentamente, sorvendo aquela poesia musicada, muito mais fascinada pelo som do que ele diz - e pelo modo como o diz - do que pela melodia. É a música da palavra, não a da voz nem a da melodia, o que suscita em mim todo tipo de sensação estética.


Não sei explicar essa contradição. Não! Não que dançarinos não leiam, mas, em geral, a música ocupa muito mais espaço nas suas vidas. Já eu adoro ler. Como num promenade
(1) , folheio livros saboreando o talento que jamais terei para escrever, aprendendo o que tenho curiosidade de saber, compreendendo o que não consigo entender sozinha. Benditas palavras.

Ontem foi "Aforismos" de Oscar Wilde (2): "A alma nasce velha e se torna jovem. Eis a comédia da vida. O corpo nasce jovem e se torna velho. Eis a tragédia da alma"; hoje é um presente da minha amiga Valéria Moreyra, neta de Alvaro Moreyra, que me presenteia, de quando em quando, com pedaços de pura emoção de seu avô. Em "Cada um carrega o seu deserto" achei essa oração que me comoveu e me fez reproduzi-la:

 


Oração a Santo Antônio

Meu velho Santo Antônio, não perdi
Nada do que de Deus recebi:
A luz, o ar, os sentidos, a paciência,
o tempo, a calma. A esperança, a consciência,
até o juízo (o que às vezes leva a gente
a parecer, aos outros, que está doente...)
Ainda guardo, no mesmo coração,
a mesma crença, a mesma solidão,
esta graça, este amor, esta bondade,
o sentimento da inutilidade,
e tudo que me fez talqual (3) eu sou,
tudo, talqual, em mim se conservou.
Então, por que lhe rezo? Que pretendo
Mais, se continuo tendo, tendo, tendo?
Por que perturbo o seu descanso assim?
Não venho pedir coisas para mim.
O que eu quero (será que isto consigo?)
É que tudo na vida seja amigo!
É que deixe de haver, em toda a terra,
O que sempre tem havido tanto: guerra!
Chega! Vamos tratar do matrimônio
Da paz com o mundo!... Vamos, Santo Antônio?

Danço! Mesmo sem dançar carrego em mim uma tatuagem forjada por outros meios, pelo exercício diário que impus a meu corpo e que o tornou flexível, mas forte. Sinto, me aflijo como todos, com a conturbação desse mundo dominado por Bolsa de Valores, por taxas e cotações, desse mundo do ter, não do ser. A aflição do poeta soa, infelizmente, tão atual! Álvaro Moreyra traduz minha angústia e, com o poder que só a Arte possui, refletiu ontem (4), sobre o hoje. Até sobre a crise do matrimônio fala esse modernista/comunista manso e bom.

Bem brasileira essa história de comunista que reza. Engraçado!

Essa percepção do futuro, esse dom artístico de captar um amanhã que ainda não aconteceu, me lembrou o Chico quando diz em "Valsa brasileira":

"... Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer"

Vamos tratar do matrimônio... Ah! É isso! Por que negar o casamento? É tão bom... Ah, por que negar o casamento? É tão bom aprender a viver tendo que, espontaneamente, dar satisfação a alguém, podendo dizer: "Vou sair, chego a tantas horas!" Ou: "Eric, Roberto, vocês estão em casa?" Ah, como foi bom fazer enxoval de noiva, abrir lençóis, toalhas, arrumar o apartamento alugado quase sem móveis, aguardar a vida futura sem expectativa de carro, freezer, micro-ondas, TV a cabo. Viu, Alvinho - assim lhe chama minha amiga Val -, o que a sua poesia despertou em mim?

E não é que encontro "minha" dança descrita por ele com raro poder de síntese? Quem me dera poder fazê-lo:

"A primeira dança foi a da primeira criatura que se viu alongada no chão, como querendo libertar-se. Depois, tudo foi dança. Até o futebol. Até o Box. As nuvens dançam no ar. As ondas dançam no mar. Dança é música que se vê. Nijinski (5) dançou pintura. Isadora Duncan (6) dançou escultura. Regina Facary dançou poesia. Carlitos (7) dançou solidão".

Meu Deus, por favor, me ajude: quem foi Regina Facary?


Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".


 

Ver outros artigos da coluna

 

1 Promenade: Passeio. A terminologia do ballet foi preservada em francês no mundo inteiro. Promenade significa um giro lento em torno de si mesmo. A escola russa denomina o mesmo movimento de tour lent - giro lento.

2 Oscar Wilde: (1854-1900) Poeta, romancista e dramaturgo inglês cuja vida pessoal foi muito conturbada.

3 A grafia foi mantida como o original.

4 Moreyra viveu entre 1888 e 1964. O livro citado é uma coletânea de pensamentos registrados pelo escritor ao longo de sua vida.

5 Vaslav Nijinski (1890-1950), bailarino russo que se tornou a figura mais mítica da história da dança. Acometido de distúrbio mental terminou seus dias internado num hospício.

6 Dançarina norte-americana (1878-1927), se opôs às formas do ballet clássico propondo uma dança livre inspirada na Grécia dionisíaca. Morreu tragicamente enforcada pela própria écharpe que se enrolou nas rodas do carro que dirigia.

7 Charles Chaplin (1878-1977), inglês, foi o criador do personagem Carlitos, talvez o maior da história do cinema.

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