A cena ocorreu
na casa de uma grande amiga minha. No almoço da Sexta-feira Santa,
ela pensou num cardápio diferente e de acordo com as normas da
data: assou um belo peixe - uma tainha grande -, caprichou no arroz com
açafrão, batatas douradas... À hora do almoço,
mesa posta, os seis filhos e o marido acomodaram-se e a mãe trouxe,
na travessa oval, o peixe inteiro, ainda fumegante.
Num primeiro momento, tudo parecia correr normalmente, até que
alguém reparou na expressão de espanto da menina de três
anos e do irmão de seis. Os dois pequenos tinham os olhos postos
no assado, a menina chegou a fazer bico...
- É um peixinho...!
Ah! Só então a mãe dava-se conta de que, para os
menores, os pedaços de peixe sempre chegavam desfiados no arroz
com feijão... Naquele momento, no entanto, o conceito de peixe,
que nunca passara de um cheirinho e um gosto bom, tomava para eles corpo.
E corpo morto, de olho grande e estatelado. Quer dizer que peixe-comida
era aquele mesmo peixe que nadava no mar e nos rios, que aparecia nos
filmes e desenhos animados e, quando pequenino, podia ser visto nos aquários,
por aí? Silêncio. O almoço tinha virado velório
de peixe.
Como não fosse o momento mais propício para explicar certos
episódios da cadeia alimentar, a mãe disfarçou, fez
a conversa mudar de rumo, levou o assado para a cozinha... e pouco depois
os pequenos comiam a antiga idéia de peixe desfeita no arroz, que
fome não é coisa que discuta conceitos diante de colheradas.
O fato deu-se antes do grande sucesso de "Procurando Nemo".
Penso que, se fosse depois, minha amiga teria tido mais dificuldades para
contornar situação tão constrangedora. Talvez acabasse
fritando ovos, sem jamais mencionar a origem natural dos amados frangos
da "Fuga das Galinhas". Mas voltemos ao Nemo. Quem viu o filme
da "Pixar" certamente comoveu-se com a destruição
dos sonhos do jovem casal de peixes-palhaço: a peixinha Coral devorada
juntamente com as suas ovas, a exceção de uma única,
que será amparada pelo peixe-pai, Marlim. Após o ataque
do tubarão, diante da ova ferida, o peixe-pai encontra razão
para continuar vivendo: "Nemo". Esse fora o único nome
que a mãe mencionara, sonhando dá-lo ao fruto de uma das
milhares de ovas. A natureza, na figura do predador natural, selecionou,
e personalizou!, Nemo.
Creio que são raras as crianças - já que são
raros, pelas razões que todos sabem, até mesmo os adultos
-, que comem caviar. Talvez alguma criança, condoída com
a suposta frustração de algum jovem casal de peixes, se
recusasse a devorar o prato requintado, feito com ovas de esturjão.
Já os adultos, defendidos pela madura consciência de que
a cadeia alimentar é inevitável, só não provam
caviar porque, considerando-se a quantidade de ovas consumidas em uma
pequena lata, o preço da conserva é de arrancar os olhos.
E, de fato, a cadeia alimentar é inevitável, com a ressalva
de que se devem respeitar as estritas necessidades de sobrevivência.
Isso o fazem todas as espécies, portanto é de se esperar
que o homem também o faça, utilizando racionalmente os recursos
naturais.
Nenhuma outra espécie constrói um mundo novo à sua
volta, nem transforma a paisagem, nem inventa iguarias, nem domina as
intempéries ou encurta as distâncias através da tecnologia,
senão o homem. Sabe-se também que, infelizmente, por inúmeras
vezes, o ser humano, mais atento ao progresso ou, mais exatamente, à
obtenção de lucros, não se preocupou com preservação
de qualquer espécie, vegetal ou animal. Ou seja, não exerceu
verdadeiro domínio sobre a Terra, porque não se pode conceber
domínio sem equilíbrio. Ao contrário, adotou freqüentemente
uma conduta pouco racional e insensível. Mas também sabemos
que nenhum peixe-palhaço sairia procurando seu filho Nemo, nem
esse filhote sofreria tantas angústias por voltar à casa
paterna, se não fossem personagens humanizados, personalizados,
igualados ao homem nos seus nobres sentimentos.
Não nos sentamos a mesa imaginando o nome do peixe que vamos comer
e sabemos que nenhum esturjão-mãe teria posto nome na sua
ova. E não é por falta de sensibilidade que agimos tão
friamente. Pelo contrário, se há espécies que, em
certas condições, devoram a própria cria, o homem
costuma intervir para evitar a agressão, separando os filhotes,
protegendo-os...
Sensibilidade: essa é a palavra chave. Coral e Marlim contemplam
as suas ovas numa atitude semelhante à que poderiam ter um pai
e uma mãe contemplando, no microscópio, os seus embriões.
Patético? Sem dúvida! Pois não é de se esperar
que homem e mulher procriem como peixes, ainda que nos desenhos animados
os peixes pareçam gente. O ato próprio que propicia a fecundação
de um ser humano prima pelo exclusivismo, exige um encontro íntimo
e, quanto mais pleno de comunhão entre os dois seres, melhor.
As clínicas especializadas em fecundação in-vitro
ostentam o mérito de ter propiciado a casais estéreis a
oportunidade de ter filhos. Os abortos provocados na chamada "redução
da gravidez" não contam. Os embriões descartados e/ou
congelados também não contam. Em poucas situações
os fins justificam os meios de forma tão descarada... E para completar,
tendo em vista o aproveitamento das células residuais dos processos
de fecundação, (aquilo a que vulgarmente se pode chamar
de embriões), estas começam a ser utilizadas em experiências
para obtenção de células-tronco totipotentes: a clonagem
terapêutica.. Pouco ou nada se fala a respeito da possibilidade
de obter células-tronco multipotentes, tão ou mais eficientes
quanto aquelas, a partir de tecidos adultos. Segundo a Profª Lenise
Garcia, do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília,
existem células deste tipo, por exemplo, no tecido adiposo. Em
lugar de uma clonagem, basta uma lipo-aspiração para que
se possam obter células capazes de curar muitas doenças,
quando a pesquisa estiver desenvolvida.
O fato é que há muitos embriões descartados, Nemos
que nunca serão conhecidos, ovas inúteis... Quem sabe no
futuro, caso aumente a escala de produção desse "lixo",
na iminência de ter de desovar a "mercadoria", o aproveitamento
também se faça de modo mais amplo. Encontraríamos
nos supermercados pequeninas latas de iguarias, caríssimas é
claro, com a etiqueta: EMBRIÕES RECONSTITUÍDOS (a
partir de material biológico disponível). E uma oportuna
observação abaixo: "Parte do lucro da venda deste produto
é destinada aos fundos de amparo à criança abandonada".
10/02/2004
Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela
Universidade de São Paulo, Presidente
do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para
assuntos de adolescência e educação.
É autora do livro Por
um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações
Culturais.
e-mail: scaramellu@terra.com.br
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