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Coluna "Por dentro da dança"
DANÇANDO COM A HISTÓRIA

Eliana Caminada
caminada@iis.com.br


Por que comecei a escrever sobre dança, por que me tornei professora de história da dança? Porque dancei. Esta é uma realidade da qual não posso, nem quero, me distanciar. Não venho do mundo acadêmico, pelo menos não como ele é compreendido no nosso país. Sou oriunda do universo artístico, do ballet clássico - dança acadêmica - e, portanto, do teatro de grande porte; a sala de aula e o palco sempre foram a extensão da minha casa, o lugar onde me sinto à vontade, no qual encontro minha verdade interior.

Pode parecer paradoxal, mas era no palco, dançando, que eu não representava, é falando dele que me sinto inteira, eu e minha vida de dança, eu e meu casamento com um homem da dança, eu e meus companheiros da dança. Não sou doutora em nada, sou uma bailarina formada em ballet.

Talvez, por isso mesmo, após assumir pela primeira vez uma atividade teórica tomei conhecimento, bastante assustada, de que minhas aulas eram aceitas pelo alunado exatamente porque abordavam a história da dança a partir de uma vivência poucas vezes traduzida em discurso verbal por bailarinos, sobretudo bailarinos clássicos.

Disseram-me os alunos de minha primeira turma: "Eliana, suas aulas mostram que sua visão da dança resulta do exercício de sua profissão. Percebemos que nunca você conseguiu se distanciar dessa realidade, que não se envergonha de se emocionar com os artistas diante de nós. Vê-la ilustrar com seu próprio corpo o que você acha que não será entendido por palavras é inesperado; nos fascina porque nos mostra outra perspectiva da profissão".

Fiquei perplexa! Não podia supor que os estudantes estavam avaliando e assimilando uma "prática pedagógica" usada, intuitivamente, com absoluta espontaneidade; mais do que isso: não imaginava que a possibilidade de unir a prática corporal da dança, freqüentemente mais familiar para todos os que fazem do corpo sua forma de comunicação, ao universo maravilhoso das palavras, começava a fazer sentido.

Assumindo a inevitável cumplicidade entre mim e os alunos, me dei conta de que, associando interfaces, conseguia me comunicar melhor e transmitir com mais segurança, clareza e ... emoção.

Sim, com emoção! São (com o verbo no presente) incontáveis as vezes em que eu e a turma choramos ou rimos juntas, cumprindo num curso de arte a função catártica dela, Arte, fugindo da burocracia formal tão estranha a sua natureza.

Hoje, um pouco mais tarimbada, enfrento seriamente a idéia de que posso e devo contribuir para a legitimidade de minha profissão, assumindo, em caráter definitivo, uma disciplina teórica, ajudando a reverter a concepção, não sei se apenas brasileira, no caso até por motivos culturais e sociais, de que bailarinos dançam e teóricos pensam, de que pessoas sensíveis mas sem experiência prática da profissão são sempre muito inteligentes, e nós, intérpretes, muito limitados intelectualmente.

Não sou intelectual, estou bem distante disso. Minha titulação, ainda que tenha me formado por uma escola oficial com duração de nove anos, a Escola de Danças Maria Olenewa, paralelamente aos meus estudos particulares com grandes nomes do ballet, foi mesmo o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e a preciosa orientação que recebi de meu pai. Acrescente-se ainda a convivência com artistas e com o ambiente artístico que ele me proporcionou e sobre o qual construí minha vida. Porém, ainda que considere essa formação insubstituível, escrever de forma sistemática impõe humildade e cautela; até porque permaneço, e assim será para sempre, pensando, sentindo, sentando, caminhando, vivendo como bailarina. A dança é minha segunda natureza.

Mas estou com bem mais de cinqüenta anos e me flagro com outras preocupações: tentando encontrar um caminho novo para a dança cênica se está confundindo falta de formação específica e de técnica balética com criatividade, de que se está verbalizando em excesso uma arte corporal por excelência, de que se está desconstruindo, sistematicamente, o que foi construído com inúmeras dificuldades. Essas constatações me tiram o sono, me deixam com o sentimento de que num país como o nosso, de cultura recente e memória curta, isso poderá ser fatal.

Venho do mundo dos teatros que ainda são escritos com agá – Theatro - fui escolhida por uma dança associada à tradição e por isso nunca escrevo balé e sim ballet[1]. Consideramos inoportuno e inconveniente, no país de tantos estrangeirismos idiotas, mudar uma grafia universalmente adotada, quando, em última instância, já possuíamos a versão portuguesa da palavra – bailado - como em todos os programas até a década de sessenta.

Colaborar escrevendo para um espaço eclético/ético como o “Portal da Família”, que conta com nomes de grande expressão em suas áreas, constitui-se mais um desafio. Cabe-me, ou assim penso eu, motivar pessoas de todas as idades a se interessar pela dança e a nos ver como gente comum: mãe, esposa, filha, tia e sobrinha, enfim, alguém que considera a família como o alicerce mais importante, hoje mais do que nunca, para o enfrentamento da vida e de como ela se apresenta.

Nessa rápido auto-análise, não posso concluir sem mencionar que a convivência da última década com os companheiros docentes de cursos universitários, nos quais leciono ou lecionei, tem sido profundamente enriquecedora. Se algum preconceito contra o saber adquirido na “vida vivida” existe, ele vem apenas dos acadêmicos de gabinete. O professor, aquele que enfrenta o dia-a-dia de uma sala de aula, é a companhia mais generosa e mais compreensiva que a vida me fez conhecer.



Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".


 

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1. Ballet - pequeno baile - deriva de ballo - baile. A Itália, país de origem da palavra, mantém a grafia original balletto. Os demais países (alguns inserem apenas declinação), incluindo EUA, Inglaterra, Japão, China, Cuba, Rússia, etc., jamais mexeram nessa tradição, até porque, toda a terminologia do ballet é mantida em francês, ou seja: bailarinos driblaram a Torre de Babel, além do corpo possuem um vocabulário que lhes permite se entenderem em qualquer lugar do mundo.

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