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O ABORTISMO IDEOLÓGICO


Ditadura da idéia...

Com esta expressão sintética referimo-nos a todo o complexo argumentativo que trivializa a gravidade da prática abortiva ou a considera como uma libertação humana, apoiado na seguinte idéia: "A pessoa humana - o seu ser, a sua vida etc. - é uma realidade histórica e cultural".

E acrescenta-se: "Não existe uma natureza humana imutável. O que entendemos por homem é fruto do próprio e imanente desenvolvimento cultural da humanidade. Por conseguinte, enquanto não se manifestem as notas que a cultura entende como definidoras do humano, não há pessoa, nem ser, nem vida humana. Qualquer proteção do humano de origem transcendente é uma alienação do homem, através da qual este foge da autodefinição e da autoconstrução e transfere essa responsabilidade para um Ser superior inexistente. Existe pessoa, portanto, quando existe um mundo de consciência explícita, uma ordem de interioridade autoconsciente e um desabrochar da própria liberdade.

"Uma vez que não possui essas características, o feto talvez seja vida na perspectiva biológica, mas não é um ser humano do ponto de vista ideológico e cultural. Quem suprime um feto suprime vida biológica, mas não uma humanidade. A pessoa deve permanecer livre diante da vida meramente biológica. A cultura liberta-a. Suprimir um fato biológico que impede a mãe de realizar-se é um ato de libertação que a torna mais humana".

Por trás deste raciocínio fulgurante, esconde-se o moderno Leviatã do totalitarismo cultural, da "ditadura da idéia". Ela aparece quando o pensador substitui a realidade natural pelas suas idéias. A razão deixa de ser um instrumento para conhecer o que o homem é e arroga-se a tarefa de criar ou fabricar o homem. Os fautores da cultura erigem-se em fautores do homem. Quem fabrica a idéia "homem" fabrica o homem, e quem o fabrica domina-o, faz dele o que quiser, porquanto o faz à "imagem e semelhança" do seu pensamento arbitrário e da sua vontade arbitrária. Não há maior totalitarismo e tirania.

O aborto de bases ideológicas tem, sem dúvida, a argumentação mais sofisticada e complexa. Sob as suas teses palpita uma concepção imanente, histórica e cultural da pessoa e da vida humanas. E aí está também a sua maior fragilidade. O ideólogo, com efeito, que substitui a realidade objetiva e permanente do homem pela sua idéia do humano, não pode nem poderá nunca superar a objeção máxima ao totalitarismo cultural e ideológico: só pode criar o homem quem é capaz de dar a si mesmo a existência e a essência.

O homem não é um mero produto cultural (do pensar e do idear humanos) porque a cultura não se cria a si mesma, mas é um produto humano, e os homens por sua vez não podem dar a si mesmos o ser que eles são. O homem não é Aquele que é. Somente Aquele que é - Deus - pode dar o ser a outros. Não existem homens criadores de outros homens e homens criados por outros homens - por muito cultos que sejam -, pois ou aqueles são deuses ou estes são monstros.

Em suma, como é que a razão ou a vontade de poder de um homem ou as razões de um grupo de homens podem pretender criar o que uma pessoa é, o que é o humano, o que é a vida humana ou a vida que merece ser vivida, se essa razão e essa vontade de poder não puderam dar a existência a si mesmas? Se nenhum homem existe como conseqüência de um ato da vontade pelo qual se tenha autoconstituído na existência e naquilo que é, como é que depois esse homem pode atribuir-se a decisão e o poder de determinar o que é o humano, quando deve existir e quando deve ser suprimido?

...e experiência cotidiana

Nada melhor para desfazer o sonho racional do ideólogo do que a luz da experiência cotidiana. Mãe alguma, nem sequer a ideóloga, aborta simples e exclusivamente por pensar que o feto não merece a consideração cultural de "ser humano". Se aborta, é por motivos particulares, que justifica mediante uma tintagem ideológica.

Esta tintagem atua normalmente a posteriori, isto é, depois de o aborto ter sido considerado conveniente por outros motivos. O abortismo ideológico desenvolve, portanto, a argumentação mais complexa, e ao mesmo tempo jamais atua como motivo concreto, imediato e exclusivo para quem aborta. É o raciocínio mais radical e o mais irreal.

O efeito peculiar do abortismo ideológico é trivializar o valor da vida e da pessoa na sociedade. Mas o beneficiário desta trivialização não é a pessoa, mas o poder, que argumenta para fazer do trivial o que bem deseja. A trivialização da vida é assim o caminho mais curto para o totalitarismo político.

Observemos, por outro lado, que a trivialização cultural do ser humano ainda não nascido é uma trivialização da vida de quem não pode opor-se a esta degradação. O ideólogo trivializa o próximo, e um próximo silencioso. E trivializa a vida em nome da idéia, quer dizer, estabelecendo uma barreira entre aqueles que idéiam e aqueles que ainda não idéiam no silêncio do claustro materno. Mas sabemos muito bem que, para idear como homens, é preciso passar antes por um ventre materno. Isto é, o ideólogo - um antigo feto -, quando trivializa o feto, trivializa-se a si mesmo. Diante de uma idéia trivial, não convém, pois, perder mais tempo.

Mas os fetos são seres humanos vivos e reais, ainda que talvez no futuro venham a imaginar trivialidades sobre si mesmos. E felizmente o senso comum mais elementar nos ensina a desconfiar de quem julga trivial e irreal uma realidade tão viva como o feto e, pelo contrário, considera geniais e reais - nunca triviais - as teses que o seu pensamento formula. Há no abortismo ideológico muito daquela caricatura do intelectual que acredita cegamente no que pensa pelo simples fato de ter sido ele a pensá-lo. E por que razão aquele que pensa ser ele próprio - enquanto vida - mera trivialidade, não há de ser menos trivial naquilo que pensou?


Fonte: Livro Aborto e Sociedade Permissiva, de Pedro-Juan Viladrich, 1a Edição, Editora Quadrante, São Paulo, 1987



A questão do aborto e da sua legislação situa-se hoje no centro de um debate apaixonado, que além das discussões médicas e legais envolve as bases da moral e da sociedade.



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