Portal da Família
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Sobre calor e higiene |
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Inês Rodrigues |
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Até aquele dia de primavera a vida de Brian sempre fora muito normal, como lhe apetecia. Tudo planejado, nada fora do lugar. Ele contratava uma senhora para ir à sua casa uma vez por mês arrumar todos os armários. Camisas, meias, sabonetes, latas de ervilha e azeitona, tudo era mantido em perfeita ordem e simetria, distribuído em prateleiras, gavetas e armários limpos e brancos, nos cômodos apropriados. Seus livros e CDs, organizados nas estantes da sala por ordem alfabética. Tão simples controlar a vida de modo prático. Brian não gostava de perder tempo e não pensava em se casar. Numa tarde ensolarada de abril, ele voltou para casa mais cedo e encontrou o bilhete da empregada sobre a mesa da sala: "As formigas estão chegando, por favor, compre inseticida". Sem dar muita atenção à mensagem ele foi à cozinha e abriu a geladeira. Enquanto procurava o que comer, ouviu um barulho estranho atrás do calendário de papel grudado na parede. Tchi, tchi, tchi, crec, crec, crec, pareciam milhares de sacos plásticos sendo amassados de uma vez. Foi lá e desgrudou uma das pontas da imensa folha de papel da parede de tijolos expostos. Por um segundo sentiu repulsa e medo. Era um exército de negros monstrinhos em miniatura, capaz de aterrorizar um obcecado por higiene como ele. Sem exagero, centenas, talvez milhares de formigas, marchavam num emaranhado de caminhos escuros cavados na parede sabe-se lá há quanto tempo. Só se via aquela massa de pontinhos pretos apressados, atropelando-se uns aos outros, competindo para chegar na frente. Brian recolocou com a ponta dos dedos a parte desgrudada do calendário. No dia seguinte compraria o inseticida mais poderoso que encontrasse. Mais tarde, ao deitar-se, ainda ouvia o barulho. Demorou a dormir. De madrugada acordou com o ruído mais forte. Foi até a cozinha. Elas estavam agora por toda a parte. Pelo chão, subindo e descendo da pia para os armários, saindo de trás de quadros em filas indianas longas e ordenadas. Parecia um cômodo vivo onde tudo se mexia em delicadas ondulações. A solução: supermercado 24 horas. Veio de lá às quatro da manhã com um tubo gigante de mata-formigas. Sem nem tirar a comida da frente detonou todo o conteúdo em frestas e superfícies. O cheiro era insuportável, mas Brian pensou: "Melhor do que os bichos." E foi dormir. Horas depois despertou com dor de cabeça. Desceu atordoado, na esperança de ter tido um pesadelo. Não tivera. Os pequenos cadáveres despencavam por todos os lados em meio à desolação de guerra que tomava conta do cômodo malcheiroso. Tirou a manhã de folga e limpou a casa. Depois foi trabalhar aliviado. Mas à noite, ouviu novamente o rumor crepitante de outros bichos, renascidos das cinzas e mais poderosos. Comprou desta vez uma bomba de flite onde cabia mais veneno. Porém, quanto mais o verão se aproximava, mais animaizinhos resistentes apareciam: caramujos, moscas gordas, mosquitos de pernas descomunais. Além das teias de aranha, multiplicando-se até no espelho retrovisor do carro. Depois de tantas semanas de frio, era difícil admitir que os insetos chegavam na primavera junto aos pássaros e às tulipas coloridas. Nos meses seguintes Brian decidiu que o tempo quente não era bom para a ordem e a higiene. Vendeu a casa, o jardim, o inseticida. Mudou-se para a Lapônia. |
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Inês Rodrigues é jornalista, tradutora e mãe de dois filhos. Atuou nas editorias de artes e música em diversos veículos da imprensa brasileira como Jornal da Tarde, Editora Globo, Rádio Gazeta e Fundação Padre Anchieta. Há 6 anos fora do Brasil, já viveu na Itália e Inglaterra, e atualmente mora em Nova York. e-mail: ines_rodrigues@hotmail.com Publicado no Portal da Família em 28/01/2008 |
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