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Mais beleza nesta rotina

Sabrina Duran

Se você nunca ouviu um tango do argentino Astor Piazzolla, convido-o (a) agora a fazê-lo. Se me permite, sugiro até uma peça, Adiós Nonino, que Piazzolla fez para o avô falecido e que é uma das músicas mais bonitas que já tive o prazer de ouvir. É esse tango que ouço agora e que me inspira – juntamente com idéias que há alguns dias venho maturando – a escrever este post sobre a necessidade de apreciar a beleza que existe nas pessoas, realidades e objetos mais presentes – e talvez por isso mesmo mais esquecidos – na nossa rotina.

A beleza de que falo aqui não é, necessariamente, a beleza física de uma pessoa ou de uma obra de arte, embora também esta beleza faça parte do conceito mais profundo que pretendo abordar.

Tomás de Aquino, filósofo italiano do século XIII e um dos maiores que a História já teve, descreve a beleza pelos seus efeitos. "Belo é aquilo cuja contemplação agrada", escreve ele. Creio que para o enfoque desse post – que não pretende abordar critérios estéticos sobre o que é ou não é belo –, essa definição é bastante clara, embora existam outras mais completas e tão verdadeiras quanto.

Para organizar o pensamento, cito a seguir três níveis de beleza capazes de provocar deleite no homem:

1) Beleza inteligível: é aquela própria da vida espiritual e está vinculada à verdade e bondade moral. A conduta honesta de uma pessoa, por exemplo, costuma causar admiração e agrado em quem a aprecia. O oposto dessa beleza, portanto, é a fealdade própria da mentira.

2) Beleza natural: é a que procede da natureza dos seres e objetos. Por exemplo, uma planta de estrutura delicada, uma pessoa com traços harmônicos, um animal robusto e ágil são capazes provocar deleite. Outros atributos naturais que não os meramente físicos também podem ser apreciados como belos. Exemplos disso são a funcionalidade dos órgãos humanos e a ordem com que alguns insetos se organizam para armazenar alimentos.

3) Beleza artificial: é produto da criação humana, no qual o homem tenta plasmar algo belo, como nas obras de arte. Aqui podemos citar como exemplo também a música, o cinema, as artes plásticas em geral, a literatura e outras manifestações artísticas.

Todos esses níveis de beleza estão presentes nas próprias pessoas, objetos e circunstâncias, pois fazem parte dos seus atributos. Isso significa que, mesmo não havendo ninguém para apreciar a beleza, ela continuará sendo bela e existindo da mesma forma.

Além de variarem entre si – há coisas mais ou menos belas – os graus de beleza também são percebidos de diferentes formas por cada observador. A capacidade que o ser humano tem de contemplar o belo dependerá da bagagem intelectual e emocional que possui para captá-lo e compreendê-lo. Uma pessoa que domina as técnicas da pintura, por exemplo, verá um quadro com muito mais riqueza de detalhes que uma pessoa que não conhece tais técnicas. Esse fato, no entanto, não subtrai nem uma centelha da necessidade que todos têm de contemplar o belo.

E por que é necessário admirar a beleza?

Em um ensaio sobre a experiência estética como fonte de desenvolvimento pessoal, o catedrático da Universidade de Madri Alfonso López Quintás ressalta que o homem é um "ser de encontro", pois se relaciona com todas as realidades que o circundam. Essa capacidade de relacionar-se e interagir com o outro, no entanto, só é possível quando o homem é capaz de adotar uma atitude de "desinteresse" perante as pessoas e realidades que o cercam, quando é capaz de observá-las e querê-las pelo que são em si mesmas, e não pelo que lhe podem render. "Se me deixo levar pelo afã de obter ganhos imediatos, fico preso às realidades vistas como objetos (...). Ao reduzi-las desta forma não posso encontrar-me com elas. Penso que eu estou aqui e as outras realidades encontram-se ali, em frente a mim, como algo distinto, distante, externo e estranho ao meu ser", diz Quintás, deixando clara a inviabilidade de uma interação verdadeira entre o homem e algo ou alguém que é incapaz de apreciar desinteressadamente.

E aqui se desvela o motivo que explica por que a contemplação do belo é necessária. Na base dessa contemplação está justamente o "olhar desinteressado", o mirar para admirar apenas.

Esse exercício de desprendimento dos próprios interesses para admirar o que as pessoas, objetos e circunstâncias têm de bom em si mesmos é capaz de livrar a alma humana do embotamento provocado pela busca constante de contrapartidas – mesmo as legítimas – no âmbito familiar, no trabalho, entre os amigos e colegas. Mais que livrá-la do embotamento, a contemplação desinteressada do que é belo é capaz de dilatar a alma, tornando-a mais propensa a perceber o que é bom e agradável – do ponto de vista moral, intelectual, espiritual e estético –, mais aberta ao outro e mais sensível a detalhes e sutilezas fundamentais nos relacionamentos. Quem não é capaz de alegrar-se com a virtude de uma pessoa, é menos capaz ainda de ajudá-la a superar defeitos ou dificuldades que porventura tenha, já que essa tarefa exige maior esforço pessoal e disposição para servir. O oposto desse exemplo também é verdadeiro.

Admirar é algo bem prático

Apreciar o que é belo não significa sair por aí com ares de contemplação, como se o mundo lá fora tivesse sido tragado pelo nosso deleite. Admirar é algo bem prático e realista, seja quando admiramos a generosidade de uma pessoa, a funcionalidade de um equipamento tecnológico ou a criatividade de um roteirista e seu filme bem feito. Sem dúvida não é o caso de abrir aqui um tópico com o título "Contemplação eficaz em 10 lições" ou algo que o valha – esse tipo de "receita" não existe. Mas é possível dizer que a razão, enquanto contempla algo, enquanto admira, busca compreender o porquê do seu deleite e torná-lo vivo na memória.

Assim, numa "próxima contemplação", poderá recuperar a compreensão desse porquê e potencializar ainda mais a percepção da beleza que tem diante de si. Se percebo, por exemplo, que a mistura dos violinos com o bandoneón de Piazzolla é o que mais me agrada, não há dúvidas de que ouvirei com mais freqüência e atenção as músicas com essas características.

Por isso, quanto maior for o conhecimento sobre a pessoa, circunstância ou objeto admirados, mais intenso o deleite e mais fácil chegar a ele.

A contemplação do belo é produtiva

Quem acha que admirar o belo é perda de tempo ou coisa para pessoas com sensibilidade de poeta, exponho agora um caso inconteste de que essas afirmações estão equivocadas. Os personagens do caso são dois prêmios Nobel de Fisiologia e Medicina de 1962: James Watson e Francis Crick, cientistas que desvendaram, em 1953, a estrutura do DNA. À parte a competência profissional de ambos e sua insistência nas pesquisas, é preciso dizer que a sensibilidade que tiveram para seguir as pistas dadas pela beleza de um organismo vivo também foi responsável pela descoberta. Watson, ao avaliar a congruente estrutura do DNA, afirma que ela é "incrivelmente bela para não ser verdadeira". Numa carta enviada a um amigo cientista, Watson o coloca a par de suas descobertas e, mais uma vez, recorre à beleza para ressaltar a importância do que tinha em mãos: "Hoje estou muito otimista, porque acredito ter um modelo muito gracioso, tão gracioso que me surpreendo por ninguém ainda ter pensado nele até agora".

Beethoven, como artista e gênio que era, comovia-se com as belezas mais simples. "O que há de mais belo no mundo é um raio atravessando a copa de uma árvore", disse o criador da 9ª Sinfonia. E era na própria natureza que ele buscava inspiração para suas criações. "Beethoven costumava passear pelo campo antes de compor a fim de inspirar-se. O contato com a natureza estimulava sua inspiração porque via todos os seres como sinais do Criador e podia entender sua mensagem profunda e dialogar com eles", explica o catedrático da Universidade de Madri Alfonso López Quintás.

A beleza dilata a alma, é verdade, e pode fazê-la descobrir realidades imateriais no mundo material. O livro Jornadas Espirituais (Editora Quadrante), obra que reúne depoimentos de pessoas convertidas ao catolicismo, traz diversos exemplos desse fato. Cito apenas um: "Num dia de primavera, no último ano do colegial, tomei o trem para ir à Filadélfia a fim de fazer umas pesquisas escolares na biblioteca pública. No caminho de volta, passei pela Catedral de São Pedro e São Paulo; estava aberta e entrei... A igreja fora projetada com uma cúpula sobre o cruzamento das naves. A luz das janelas da cúpula incidia sobre o altar. Enquanto contemplava a beleza daquele lugar, soube que Deus estava ali. Nunca tinha percebido até então a presença de Deus" (Dale O´Leary).

Responsabilidade dos artistas

Conversando com um amigo que é artista plástico – e já com a idéia de escrever esse post – perguntei-lhe o que pretendia fomentar nas pessoas com as obras que produz. "Pretendo tocá-las de alguma forma, sensibilizá-las, mexer com elas. Se conseguir provocar alguma reação, já me darei por satisfeito", disse. E não há dúvidas de que provocará.

Os artistas plásticos, escritores, músicos e atores, de uma forma bem particular, são capazes de tocar o homem de maneira imediata, já que lidam diretamente com os sentidos – portas de entrada a todo e qualquer conhecimento – e com a sensibilidade. A importância dessas pessoas para a formação do homem é tão grande que o papa João Paulo II, em 1999, escreveu: "O artista vive numa relação peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza é a vocação a que o Criador o chamou com o dom do talento artístico. (...) Quem tiver notado em si mesmo esta espécie de centelha divina que é a vocação artística, adverte ao mesmo tempo a obrigação de não desperdiçar este talento, mas de o desenvolver para colocá-lo ao serviço do próximo e de toda a humanidade. De fato, a sociedade tem necessidade de artistas (...) que garantam o crescimento da pessoa e o progresso da comunidade" (Carta aos Artistas, 1999).

Astor Piazzolla, Beethoven e outros artistas – e não digo apenas os reconhecidos pela História – já têm parte nesse progresso. Suas obras maravilhosas certamente degelaram muitas almas e dilataram outras tantas.

flor

 

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Sabrina Duran é jornalista e repórter, e mantém o blog http://filosofiaparausar.blogspot.com/

Ouça Adiós Nonino no site do UOL: http://musica.busca.uol.com.br/radio/index.php?busca=Adi%F3s+Nonino&param1=homebusca&check=musica&enviar=OK
(a primeira versão é a melhor entre as quatro que estão no site)

Saiba mais sobre Astor Piazzola

http://www.piazzolla.org/ (em inglês)


http://www.piazzolla.org/index-espanol.html (em espanhol)

 

Fonte: ACeA - http://www.acea.org.br

Publicado no Portal da Família em 06/08/2008

 

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