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Minha vida queridaMalba Tahan |
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Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibete. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os monges imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão. A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação. O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li. Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino. - Han-Ru, ó gênio desapiedado! - exclamou. Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-lí? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte. Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado
do Eterno: O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: - Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver. Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante? Aceitas essa proposta? As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida? - A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e me orientaram na vida? - Farei como pedes, meu amigo - respondeu o Anjo da Morte. - Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer. Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada? O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram muito apreciados. Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá: - A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru. O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles. Ao ouvir a consulta do jovem, Nian-si não
se conteve. A divergência entre os dois amigos mais fez
crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-ta. Kín-Sa, citado no Tibete como um estudioso
das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo: E concluiu o seu conselho com estas palavras: - Fizeste bem em hesitar. A hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam. Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável
a proposta sugerida pelo douto Kin-Sa, e levou-a, sem perda de tempo,
ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte. Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com
o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes
do Tibete. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li,
vocábulo que significa "minha vida querida". - Onde está Ti-long-li? - perguntou, ansioso, aos amigos. - Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à Ti-long-li ? Disse um dos amigos: E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado
pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a
blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia
os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra.
Insultava o nome do Criador. Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso
deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível
angústia que lhe esmagava o coração. Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante
de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte. E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu: - E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder
a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um
segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!
Do livro Minha Vida Querida (Os segredos da alma
feminina nas lendas do oriente), de MALBA TAHAN |
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