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A PERSONALIDADE DO NASCITURO À LUZ DO
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Victor Santos Queiroz

Conhecida e fecunda é a discussão sobre a personalidade do nascituro, mormente a teor do texto do artigo 4º do Código Civil de 1916 [1], que vem praticamente repetido no texto do artigo 2º do novo Código Civil [2].

Neste contexto, digladiam-se os adeptos da teoria natalista, da teoria da personalidade condicional e da teoria concepcionista[3].

Segundo a teoria natalista, o nascituro teria mera expectativa de direitos, mesmo porque a personalidade, na dicção do caput do artigo 4º do Código Civil de 1.916, somente se adquiriria a partir do nascimento com vida[4].

Os adeptos da teoria da personalidade condicional, por sua vez, asseveram que o nascituro teria direitos que estariam subordinados a uma condição suspensiva consistente no nascimento com vida[5].

Já para os partidários da teoria concepcionista – à qual também se filia o autor destas breves linhas –, o nascituro é sujeito de direitos e obrigações desde o momento da concepção[6].

Argumentos em prol de uma ou de outra teoria há vários e respeitáveis, principalmente aqueles baseados na situação exclusivamente jurídica do tema, independentemente de assertivas de cunho ideológico, moral e religioso.

Nesta ordem de idéias, e para contribuir ainda mais com a reflexão em torno da questão de ser o nascituro pessoa ou não, é que este trabalho se propõe a direcionar o respectivo debate a partir da análise do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente. Lança-se, pois, a indagação: o nascituro é sujeito de direitos nos termos da Lei 8.069/90?

Sabe-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, como dispõem seus artigos 1º e 2º[7], visa à proteção integral da criança e do adolescente, considerando-se criança, para tal finalidade, a pessoa até doze anos de idade incompletos.

Criança para a Lei 8.069/90 é, portanto, pessoa. Aliás, diversa não poderia ser esta conclusão, eis que somente as pessoas – físicas ou jurídicas – são titulares de direitos. E o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente concretiza a tal proteção integral à criança atribuindo-lhe uma série de direitos, entre os quais se incluem os referentes à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar, etc, como se infere de seus artigos 3º e seguintes.

Mas a expressão criança deve ter significado técnico e específico. Como dito, engloba o rol de pessoas até doze anos de idade incompletos. A lei referiu-se, assim, ao termo limite máximo da idade da criança, silenciando, todavia, no que concerne à sua idade mínima.

Diante de tal omissão, dir-se-ia, com fulcro em argumentos natalistas e da teoria da personalidade condicional, que somente poderia ser considerado criança o ente já nascido, ou seja, desde o seu primeiro dia de vida.

Entretanto, o conceito de criança tem seus contornos jurídicos mais amplos traçados no artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, promulgada no Brasil por meio do Decreto 99.710, de 21/11/1990, segundo o qual: “entende-se por criança todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”[8].

Ressalte-se que tratados internacionais como a referida Convenção sobre os Direitos da Criança incorporam-se ao ordenamento jurídico nacional como atos normativos infraconstitucionais, nos termos do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição de 1988[9]. Vale dizer: o conceito de criança, para fins jurídicos no Brasil, engloba não apenas as pessoas já nascidas, mas todos os seres humanos, sendo irrelevante se nascidos ou ainda por nascer.

E ninguém há de duvidar que os nascituros são seres humanos, mesmo porque são entes que, ainda que tenham vida intra-uterina, foram gerados por seres humanos.

Inequívoco, portanto, que o Estatuto da Criança e do Adolescente, interpretado sistematicamente em meio ao ordenamento jurídico[10], ao tratar da proteção integral à criança, também incluiu os nascituros no rol dos destinatários de suas normas protetivas.

Tal conclusão se confirma a partir da leitura, por meros exemplos, de alguns dispositivos específicos da Lei 8.069/90.

O artigo 7º[11] da lei sob comento estabelece que a criança tem direito à proteção de sua vida e saúde, cumprindo às políticas sociais públicas garantir-lhe o nascimento sadio. Ora, se a lei quer garantir o nascimento sadio da criança, evidentemente deve proporcionar-lhe condições adequadas que sejam anteriores ao fato do nascimento.

Assim é que o artigo 8º[12] do mesmo estatuto assevera que a gestante terá acompanhamento médico durante a gestação, com vistas à proteção do nascituro. Veja-se que não é propriamente a gestante a destinatária da norma protetiva – até porque ela pode ter mais do que dezoito anos de idade, estando fora do alcance do artigo 2º da Lei 8.069/90 –, mas sim o seu filho que ainda está por nascer.

Aliás, o subscritor destas linhas, em sua experiência profissional como Promotor de Justiça da Infância e Juventude da Comarca de Campos dos Goytacazes entre os anos de 2001 e 2002, teve certa feita oportunidade de requisitar dos órgãos municipais de proteção à criança e ao adolescente locais atendimento pré-natal prioritário a uma mulher carente de recursos materiais e que já contava dezenove anos de idade, o que lhe foi em princípio negado ao argumento – emanado de um provável adepto da teoria natalista ou da personalidade condicional – de que uma pessoa com aquela idade não estaria na faixa de atendimento previsto no artigo 2º da Lei 8.069/90. Todavia, com o esclarecimento de que tal requisição se dirigia principalmente à proteção e à garantia dos direitos do nascituro – perfeitamente abrangido, pois, pelo conceito do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente –, os dirigentes das entidades municipais prontamente a atenderam.

Nesta ordem de idéias, e respondendo ao questionamento que motivou tais reflexões, outra não pode ser a conclusão senão a de que, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, e principalmente a teor do Estatuto da Criança e do Adolescente, o nascituro é sujeito de direito, tendo, assim, personalidade, independentemente dos discutíveis textos do artigo 4º do Código Civil de 1916 e do artigo 2º do novo Código Civil.

Espera-se tão-somente que tais modestas reflexões, que não excluem – antes recomendam – o seu aprofundamento, tampouco que não esgotam todos os possíveis argumentos no sentido de sua conclusão, possam contribuir para o aprimoramento da discussão acerca da personalidade do nascituro, sem perder de vista a necessidade da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, sempre à luz do texto maior da Constituição[13].

Victor Santos Queiroz
victorqueiroz@uol.com.br / victor@mp.rj.gov.br

Promotor de Justiça – Rio de Janeiro-RJ
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Campos

Fonte: Faculdade de Direito de Campos - www.fdc.br

Bibliografia:

ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e - “Tutela Civil do Nascituro”, São Paulo: Saraiva, 2000;
MONTEIRO, Washington de Barros - “Curso de Direito Civil”, Parte Geral, volume 1, São Paulo:Saraiva,1987-1989;
MORAES, Alexandre - “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 1997;
RODRIGUES, Sílvio - “Direito Civil”, Parte Geral, volume 1, São Paulo: Saraiva, 1997;
TEPEDINO, Gustavo - “Temas de Direito Civil”, do mesmo autor, Rio de Janeiro: Renovar, 1999;

Notas:
[1] Art. 4º: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.

[2] Art. 2º: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

[3] Sobre a amplitude e aprofundamento da discussão travada entre os adeptos das várias teorias, leia-se a excelente obra da Professora SILMARA J.A. CHINELATO E ALMEIDA, intitulada “Tutela Civil do Nascituro”, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 145/175.

[4] Cf. SÍLVIO RODRIGUES, in “Direito Civil”, Parte Geral, volume 1, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 37.

[5] Cf. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, in “Curso de Direito Civil”, Parte Geral, volume 1, São Paulo: Saraiva, 1987-1989, p. 58/59.

[6] Cf. SILMARA J.A. CHINELATO E ALMEIDA, in obra citada, p. 161/175.

[7] Art. 1º: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Art. 2º: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

[8] Apud SILMARA J.A. CHINELATO E ALMEIDA, in obra citada, p. 222. A autora referida indica haver sido a Convenção em questão promulgada por meio do Decreto 678/92, quando, na verdade, o foi pelo Decreto 99.710/90, como se extrai do banco de dados legislativos do site da Presidência da República (http://legislacao.planalto.gov.br/legislacao.nsf). O Decreto 678/92 refere-se à promulgação da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), como se infere do mesmo site já apontado.

[9] Neste sentido, vide ALEXANDRE MORAES, in “Direito Constitucional”, São Paulo: Atlas, 1997, p. 110 e 452.

[10] Veja-se que a Constituição de 1988, que garantiu o direito à vida sem fixar seu termo a quo, também determinou que regras específicas de proteção à criança fossem produzidas pelo legislador infraconstitucional, como se infere de seus artigos 5º, caput, e 227.

[11] Art. 7º: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

[12] Art. 8º: “É assegurado a gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal”.

[13] Cf. GUSTAVO TEPEDINO, in “Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil”, inserto em “Temas de Direito Civil”, do mesmo autor, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1/22.

 

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